Goethe e sua época
Fausto, o conto poético e dramático sempre mexeu comigo na vontade de querer entender o enredo todo e não somente as partes citadas pelo mundo afora e por Rudolf Steiner. Em muitas conferências Steiner menciona este conto.
Resolvi neste período de férias entre dezembro/23 e janeiro/24 ler Fausto de Johann Wolfgang von Goethe e peguei a tradução literal realizada pela escritora, tradutora e pianista Jenny Klabin Segall, que foi esposa do pintor Lasar Segall. Ler Fausto demanda esforço! Também li outros textos que me apoiaram.
Jenny é considerada exímia tradutora de inúmeras obras-primas da literatura clássica europeia em verso. Isto significa que este livro contém a primeira e segunda parte de Fausto traduzidas na sua íntegra em versos, ou seja, respeita a forma original da totalidade do poema. A maioria das traduções são versões livres em prosa e contempla somente a primeira parte do poema de Goethe. Mas eu somente descobri isso ao abrir o livro e ler o prefácio. Escolhi o livro pela capa, simplesmente maravilhosa apresentando o desenho de um ser sem rosto, com roupas de época e que de alguma forma, ainda espera para ser decifrado ou descoberto ou devorado.
Johann Wolfgang von Goethe nasceu em Frankfurt em 1749 e morreu em Weimar em 1832. Era advogado de formação, seguindo carreira do pai e ficou conhecido na literatura como escritor pelo seu infinito interesse pelo saber. Foi ele quem nos deixou a Teoria das Cores, na qual investiga o que constitui as cores e qual o efeito das mesmas sobre o ser humano especialmente sobre o aspecto da percepção emocional e psicológica.
Veja abaixo uma cronologia biográfica de Goethe incluindo eventos da época cultural em que viveu.
Essa cronologia (extraída da coleção Folha - Grandes Biografias no Cinema) que mostra os eventos da vida de Goethe e o que acontecia no mundo, foi de relevância para eu entender a época em que Goethe viveu, seus eventos e encontros.
Ele foi contemporâneo de Mozart, Novalis, Napoleão, Brüder Grimm ou Gebrüder Grimm (Irmãos Grimm – os Contos dos irmãos Grimm), Arthur Schopenhauer e Friedrich Schiller que foi poeta, filósofo, médico e historiador alemão. A amizade de Schiller e Goethe rendeu uma longa troca de cartas que se tornou famosa na literatura alemã. Goethe, além do direito, foi estudar filosofia, filologia, medicina, desenho, ótica, botânica e anatomia. Viveu a Revolução Francesa.
Onde tudo começa
Fausto é um clássico na vida intelectual alemã. Em 1506 surge menções históricas acerca deste “indivíduo” chamado Johann Georg Faust natural de Knittlingen que teria vivido entre 1480 e 1540, médico, astrólogo, vidente e alquimista. Famoso por suas alianças diabólicas e seus feitos sobrenaturais. Diante disso, torna-se uma lenda imaginada pelo povo e por diversas vezes aos olhos dos poetas e escritores da época. Tudo o que é escrito sobre Fausto torna-se o centro das atenções, rejeitado pelos teólogos e aceito pelos naturalistas, objeto de curiosidade e temor.
Em 1587, em Frankfurt, é publicada a primeira versão literária de Fausto relatando a vida de um homem que celebra acordos com o Diabo no considerado Livro Popular pelo editor Spiess. Outras versões literárias vieram antes do nascimento de Goethe como: A História Trágica do Doutor Fausto de Christopher Marlowe em 1592 e em 1685 é apresentada a primeira dissertação universitária a respeito do assunto na Universidade de Wittenberg examinando a vida deste grande mágico e concluindo bani-lo “academicamente” da vida real e intitulando como “romance mágico” no campo da “pura imaginação”.
Fausto a partir de Goethe
Erwin Theodor, professor de língua e literatura alemã na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, ensaísta e tradutor brasileiro, já falecido, escreveu no prefácio do livro traduzido por Jenny Segall: “Sabe-se que Goethe leu todos os relatos acessíveis, relativos ao Fausto, desde o Livro Popular até histórias que anonimamente se encontravam em circulação, centrados em curandeiros ou feiticeiros que teriam vendido a sua alma ao diabo, em troca de fortuna, eterna juventude ou amor.” Diz ainda que de uma forma ou outra Goethe estudou a oposição entre a uniformidade do comportamento social e a peculiaridade específica dos anseios individuais. Isso é fato, pois ao ler Fausto por mim mesma, percebo isso tanto no desenrolar da história, suas relações e ambientes quanto em minha biografia. Sinto que isso é vivo em qualquer tempo cultural e um desafio humano.
Parece que existe o Fausto “zero”, que são consideradas pesquisas de Goethe, mas não pesquisei isso. O que descobri é que Fausto está dividido em duas partes: A primeira parte concluída em 1806 e somente publicada em 1808 no formato de 12 volumes. O momento de Napoleão e suas conquistas em boa parte da Alemanha ocidental atrasaram a publicação. A segunda parte somente foi concluída pouco tempo antes da sua morte e publicada após a sua morte. Goethe deixou a segunda parte em um pacote lacrado com carta direta ao seu amigo Wilhelm von Humboldt instruindo que somente fosse aberto após a sua morte.
Nessa carta, Goethe resume seus sentimentos sobre as transformações sociopolíticas provocadas pelo advento do período industrial e tecnicista, bem como a sensação de que o mundo novo por surgir estaria “dominado por doutrinas confusas e cheio de realizações desconcertantes” de tal forma que as pessoas não partilhariam e nem teriam acesso íntimo à segunda parte de Fausto. A segunda parte de Fausto não é estudada nas escolas de segundo grau na Alemanha (literatura) e nem traduzidas em outros idiomas, pois é considerada um universo utópico. E é aqui, que fui tomando conta das pinceladas e profundidade que Steiner nos convida a observar essa obra na íntegra com atenção e cuidado.
Fausto por Goethe - Semiconsciência
Na primeira parte, tudo inicia com uma conversa entre o Altíssimo (o bem) e Mefistófeles (o mal). O Altíssimo se depara com reclamações de Mefistófeles e questiona: “Nada na Terra achas direito, enfim?” Ele responde que não e que “sem gosto atormenta os humanos”. O Altíssimo pergunta sobre Fausto e Mefistófeles responde que este serve o Altíssimo de modo estranho, pois quer chegar ao infinito, mas tem semiconsciência. O Altíssimo responde que em breve o levará à luz e Mefistófeles aposta com o Altíssimo que é capaz de conquistar a alma de Fausto. Mefistófeles tem permissão para estar ao lado de Fausto enquanto na Terra.
Nesta semiconsciência, Fausto é um homem de sucesso que quer continuar sua busca por conhecimento, aprendizado e experiencias querendo entender o mundo em que vive, porém se sente frustrado com as limitações humanas. Então, busca respostas no universo paralelo, ou seja, no mundo da magia, do oculto. Mefistófeles consegue fechar um acordo com ele usando de astúcia e mostrando tudo o que tinha a oferecer. Fausto cai em tentação, pois quer entender a existência e os mistérios do universo, tem sede contínua do conhecer. Fausto concorda entregar sua alma para Mefistófeles, no final de suas experiências e vida.
Primeira Parte de Fausto – Fausto I – o pequeno mundo
Muita coisa acontece na primeira fase, Fausto rejuvenesce como parte do acordo, decisões equivocadas por puro prazer e poder, mortes sucessivas no âmbito de suas relações. Amor carnal por Gretchen (Margarida – a ingênua), ele a engravida, abandona, no desespero, ela mata o filho recém-nascido, é presa, condenada à morte e se suicida. Gretchen tem a alma salva pelos anjos e vai para o Paraiso. Toda a família de Gretchen é destruída por Fausto. Uma representação do homem inferior ativado pelos seus atos. Nesta caminhada Fausto é um ser sem essência.
Segunda Parte de Fausto – Fausto II – o grande mundo
Goethe conclui a segunda parte de Fausto aos 82 anos, meses antes de morrer, bem no chamado inverno biográfico, um momento que eu considero fértil, pois é o aprendizado de se tornar mestre de si mesmo, e pode ser alcançado. Momento em que podemos quebrar padrões e trazer ao mundo a nossa descoberta interior sem medo, sem rancor, sem mágoas e ressentimentos de ninguém e de nada. Isso acontece, se realmente passarmos no teste da sabedoria, ou seja, viver o outono da biografia, que inicia a partir dos 40, chegando aos 63 ou até os 70 anos despertando constantemente o nosso pensar, sentir e querer. (Percebo o nascimento desse despertar, em alguns atendimentos biográficos, nas pessoas dessa faixa de idade).
Fausto nessa segunda parte carrega a culpa pela morte de Gretchen (Margarida) e é brindado pelo Arcanjo Ariel que coloca Fausto num sono profundo do esquecimento. E assim, Fausto perde a memória das destruições que ele causou e de tudo o que aconteceu antes. E tudo começa do início novamente, tanto que Mefistófeles é agora o bobo da corte de um Imperador.
O que vem a seguir no desenrolar da história entra no campo da mitologia, arquétipos e culturas diversas numa configuração onírica. Mas, o que Goethe quer mesmo nos dizer sobre essa mistura toda? O que tem por trás disso tudo? O que se repete do Fausto I em Fausto II? Ocorre alguma metamorfose? O que significa “Beleza” em Fausto II? O que Fausto quer enxergar? Deixo a critério de cada um, pois vai depender muito do entendimento que você tem hoje sobre a vida, das suas experiências de vida, dos encontros com as pessoas, e de tudo o que você aprendeu e te trouxe até aqui. Olhe para o grande mundo, aquele que ainda estamos despertando a cada passo. Aqui, Goethe nos mostra algo além do pensar, sentir e agir convencional.
Continuando o que achei no texto de Fausto II ...
Ocorre um baile típico carnavalesco e todos estão agora fantasiados com roupas e máscaras. Aqui temos Fausto vestido de Riqueza, Mefistófeles de Avarento e o Imperador como Deus Pã representando os Prazeres. Fausto se apaixona por Helena de Troia (arquétipo da Beleza) no Reino das Mães e impede o seu rapto. Wagner, antigo assistente de Fausto e agora renomado alquimista está criando um ser humano artificial, o Homúnculo, que apenas sobrevive dentro de um frasco de laboratório. O Homúnculo, quer a liberdade e deseja se tornar humano. Morre numa colisão e é dissolvido pelas águas do mar. Mefistófeles, mente e engana Helena tramando para que Fausto e Helena se casem. Fausto se casa com Helena. Eles têm um filho que morre. Helena acompanha o filho morto até o Mundo dos Mortos e deixa Fausto. Fausto aparece numa montanha e ao olhar para o céu reconhece de um lado, o ideal da Beleza de Helena e do outro lado, a Beleza da alma de Margarida (Gretchen de Fausto I).
Fausto ao ajudar o Imperador a impedir a usurpação de seu trono, ganha terras próximo ao mar e se torna um homem de ação que aterra boa parte do mar. Porém nunca satisfeito, pede a Mefistófeles que leve um casal de velhos e sua cabana para outro lugar pois estão instalados no meio de sua propriedade o que impede a vista de suas terras conquistadas. O casal de velhos perde a vida. Neste momento, entram em cena 4 arquétipos femininos representando: Carência, Necessidade, Culpa e Preocupação. Fausto é cego pelo arquétipo da Preocupação. Fausto supera o egoísmo e decide criar e abrigar os desempregados numa cidade modelo. Fausto morre e Mefistófeles reivindica sua alma. Os anjos levam a alma de Fausto para o Mundo Celeste.
Afinal, quem é Fausto?
Fausto é simbólico e exige meditação. É um conto para adultos na forma de poesia dramática. Após minha leitura, sinto que somos todos nós ao buscarmos, nas profundezas, a nossa essência. O despertar de uma nova consciência, o nascimento do homem superior em nós. Sim, pode ser considerado um representante da humanidade.
É o conhecimento que se transforma em autoconhecimento, auto educar através de vivência interna intensa!
Fausto é denso, clássico e erudito, chega a ser cansativo ler neste formato. Recomendo que você leia com calma e tire suas próprias conclusões.
Ler Fausto demanda esforço! Sem dar lugar para a preguiça! E é preciso deixar a leitura decantar. Estou decantando essa jornada imersiva em mim... e ao mesmo tempo sinto um alívio, pelas minhas descobertas individuais, que continuam chegando, pois Fausto é também, uma jornada individual.
Abraços Libertadores!
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